A modernidade trouxe a cultura do
trabalho. O ser humano passou a ser medido pela sua produção. Aquele que não
produz é um inútil. E a produção é para o consumo. Produzimos para depois
consumirmos avidamente e descontroladamente. Esta mentalidade está tão
entranhada em nós que nos sentimos frustrados e inúteis se não estivermos
fazendo alguma coisa.
Seguindo esta lógica irracional e
desumana, os homens e as mulheres de hoje vivem sempre atarefados e sentem
horror do tempo livre. Por isso quando têm uma folga ou saem de férias
continuam trabalhando. E se não têm nada para fazer inventam alguma coisa.
Precisam passar a imagem de que não são preguiçosos, mas gente que trabalha e
produz. E esta lógica se tornou ainda mais perversa com a chegada do computador
e da informática. Estes criam em nós a sensação de que o tempo encurtou e que
já não conseguimos dar conta de nossas tarefas. Por essa razão é preciso levar
trabalho para fazer em casa. Não bastam as horas passadas no local de trabalho.
É preciso trabalhar nas horas de folga.
Assim, professores não descansam
nos fins de semana e feriados. Aproveitam o tempo livre para corrigir
trabalhos, elaborar provas e preparar aulas. Pais e mães de família chegam em
casa cansados e, às vezes, nem tomam um banho e nem dão um cheiro no filho ou
na filha. Vão direto para o computador e varam a madrugada. Jovens vivem
plugados o tempo inteiro na internet. Os dedos agarrados aos teclados de suas
máquinas transmitem ao cérebro a sensação de que estão ocupados. Mesmo que seja
numa navegação entre baboseiras e idiotices. Ainda nos fins de semana os
católicos e evangélicos são convocados por padres e pastores para trabalharem
de graça para suas Igrejas. O descanso semanal, mesmo sendo eminentemente
religioso e cristão, não é respeitado. Ao final do processo temos pessoas
neuróticas, nevróticas, estressadas e irritadas. E todos saem perdendo com essa
história.
Ora, tudo isso contradiz a
experiência religiosa, particularmente aquela judaica e cristã. O Deus bíblico,
considerado o criador de tudo, descansa tranquilamente ao final de seu longo
trabalho (Gn 2,3). E, após seu descanso, não volta a trabalhar, mas se delicia
em passear pelo seu jardim, curtindo a maravilhosa brisa da tarde (Gn 3,8).
Este antropomorfismo, ou seja, esta projeção de imagens e de formas humanas de
ver o divino, carrega em si um profundo ensinamento. Mostra, numa linguagem
oriental semita o valor fundamental do descanso e do lazer. Numa perspectiva
antropológica e da simbólica expressa algo essencial para a felicidade do ser
humano.
Esta mesma perspectiva pode ser
encontrada na práxis de Jesus. Embora fosse alguém preocupado em dar conta
plenamente da missão que lhe fora confiada pelo Pai (Lc 12,50), Jesus não se
subtraia aos momentos de lazer e de descanso. Gostava de uma boa festa, de
tomar um bom vinho (Jo 2,1-10) e de uma boa comida (Mc 2,15). Sua inclinação
por isso era tão forte que ganhou a fama de ser um "comilão e beberrão”,
metido em festas e bebedeiras com gente de "má fama” (Mt 11,19). Quando
sentia muito cansaço, sabia retirar-se e isolar-se para rezar, refletir,
relaxar e recobrar as forças (Mc 1,35). Queria que os seus discípulos cuidassem
bem destes momentos de descanso, de lazer e de silêncio (Mc 6,31-32). E quando
estava descansando e conversando com o seu grupo não gostava de ser perturbado
(Mc 9,30-31). Amava parar, "perder tempo”, para contemplar e admirar as
coisas mais simples da vida, como as flores dos campos e as aves que passavam
(Mt 6,25-30). Divertia-se acolhendo e brincando com as crianças (Mt 19,13-15).
Precisamos, pois, recuperar o
significado humano do lazer e do descanso como momentos significativos para a
nossa saúde física, psíquica e existencial. Mas para tanto é indispensável,
antes de tudo, simplificarmos a nossa vida, reduzindo nosso consumo e reelaborando
nossa ânsia de possuir e de ter coisas. De fato, essa obsessão por trabalho e
produção está relacionada ao nosso desejo de ter mais dinheiro para mantermos
um padrão de vida sofisticada. Aqueles e aquelas que ainda não atingiram certo
patamar de consumo se matam de trabalhar para poder consumir. Por outro lado é
indispensável que os empregadores, pessoas físicas ou empresas, também diminuam
a voracidade pelo lucro e não matem seus funcionários de tanto trabalhar.
Afinal de contas o que importa é o bem viver e isso o dinheiro e o consumo não
conseguem nos dar de forma alguma.
Pelo contrário, uma vida mais
simples, sem tantas coisas inúteis, é a maneira mais simples de viver bem, com
saúde e tranquilidade. Um estilo de vida no qual haja tempo para se encontrar
com o Transcendente, com a pessoa amada, com o amigo e a amiga, com o filho ou
a filha. Um estilo de vida no qual possamos encontrar espaço para contemplar
uma flor que desabrocha, sentindo seu precioso perfume. Uma vida na qual exista
espaço para olhar e apreciar o horizonte, as curvas das montanhas, o azul
celeste e, quiçá, uma noite escura repleta de estrelas ou até mesmo clareada
pela lua. Uma vida onde haja tempo para sair do barulho da cidade para ouvir o
canto dos pássaros, o cantar dos grilos e o barulho de uma cachoeira.
Infelizmente não conseguimos
suportar tanta beleza e, por isso, mesmo quando viajamos para lugares
silenciosos levamos conosco a confusão da cidade. Não suportamos o silêncio de
uma mata, o cantar de um pássaro e o barulhinho da água que escorre mansinha
pelo córrego. Temos que ligar os potentíssimos sistemas de som de nossos
carros, pois o silêncio nos dá tédio e nos causa pânico. Por isso voltamos de
nossos passeios ainda mais nervosos e violentos.
E tudo isso nos impede de gozar a
vida no sentido pleno e verdadeiro da palavra. De fato, segundo a tradição
judaico-cristã, gozar a vida faz parte do projeto do Criador: "Goza a vida
com a esposa que você ama, durante todos os dias da vida fugaz que Deus lhe
concede debaixo do sol [...]. Tudo que você puder fazer, faça-o enquanto tem
forças, porque no mundo dos mortos, para onde você vai, não existe ação, nem
pensamento, nem ciência, nem sabedoria” (Ecle 9,9-10). É hora, pois, de
repensar nossa existência, refazer nossos projetos e estilos de vida, dando
mais espaço para o descanso e o lazer, para gozar a vida e curti-la bem. Isso
está nos planos Daquele que um dia nos criou para vivermos no "jardim de
Éden” (Gn 2,15).
*José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília.