O que você diz quando
alguém se recusa a ver o óbvio?
As duas caminhavam à
minha frente, conversando. Quando eu me preparava para ultrapassá-las, a mais
alta se inclinou na direção da amiga e disse a frase devagar, com raiva: “Juro,
no dia em que eu for embora, vou deixar para ele um bilhete em braile. O cara é
cego!”
Se eu fosse metade do
jornalista que eu gostaria de ser, teria parado naquele instante, girado 180
graus, e perguntado à moça, sem hesitação, quem era o tal sujeito e o que ele
fizera para merecer uma jura tão triste, e tão bonita.
Mas não. Eu apenas
atrasei o passo e prossegui, lentamente, com olhos e ouvidos voltados para
trás, na esperança de ouvir o resto da história. Não adiantou. A moça alta se
calou com ar resignado e a amiga dela, que não tinha olhos de poeta, pareceu
aliviada com o silêncio. Amores tristes, nós sabemos, podem ser infinitamente
chatos.
A frase da moça, porém,
ficou comigo. Mesmo sem um enredo que lhe desse substância, aquela imagem – o
bilhete em braile - teve a força de despertar em mim a memória de uma dezena de
situações em que eu poderia ter dito o mesmo.
Todos que já foram
deixados, ignorados, enganados ou simplesmente esquecidos sabem como pode ser
doloroso enxergar quando o outro se recusa a abrir os olhos.
A pessoa que você mais
quer no mundo está ali, trocando você por uma roubada, ou agindo da maneira
mais escrota, e não há o que dizer. Ela não percebe. Está cega. Age como se
você não existisse. Mudou inteiramente de lealdades. Não é mais a pessoa que
costumava ser. Tornou-se distante e fria. Você sabe que ela está fazendo uma
bobagem, você a conhece. Sabe, ou imagina saber, que dentro de algum tempo ela
se dará conta, enxergará, mas então será tarde. Você tem seu orgulho, afinal. A
vida é breve, a fila anda, corações lastimosos encontram amparo e futuro.
Então, a pessoa que você mais quis no mundo estará lá, pedindo, e você não terá
nada a dizer. Sinto muito, talvez. Talvez nem isso.)
Não há nada que cegue
tanto quando o cotidiano.
Ver alguém um milhão de
vezes é como deixar de ver. As retinas preguiçosas recusam novidades. Aos olhos
de hoje, aquela pessoa é a mesma de ontem, de uma semana atrás, de um ano.
Estranhamente, não é mais aquela criatura fascinante dos primeiros dias. A
beleza já não impressiona, a inteligência não surpreende, o temperamento não
comove. Aquilo que todos enxergam o cego de convívio nem percebe. Está tudo lá,
mas ele não vê, miseravelmente. Talvez seja preciso um pé na bunda. Ou talvez
baste um bilhete em braile.
Somos assim, eu acho.
Não há culpa. De quando em quando deixamos de ver o outro, embora ele esteja
lá, ou talvez por isso o mesmo. É necessário redescobri-lo. Às vezes o colírio
de uma briga faz o milagre. Outras vezes é preciso vestir os óculos do abandono
para enxergar.
Nada disso é certo,
porém.
Alguns amores perderão
contorno com o tempo, irremediavelmente. Com outros, teremos logo cedo a
sensação aborrecida de ter visto tudo. Poucos nos manterão de olhos arregalados
e queixo caído. Um número ainda menor entrará no nosso universo e fará parte
dele - sem fogos de artifício e sem holofotes girando no céu da madrugada.
Apenas estará lá, como um pedaço discreto e irremovível da nossa vida. Até que
uma cegueira nos separe.
Você sabe, não há
garantias contra isso.
Somos presunçosos e
bobos. Acreditamos, sem qualquer razão, que amanhã será melhor que hoje, mesmo
que hoje seja um dia lindo. A esperança está na nossa natureza e ela é cega. A
esperança cega. Ela nos põe com os olhos no futuro, a esperar, enquanto a vida
acontece agora, em sua plenitude casual. Você acorda numa manhã chuvosa de
primavera e ao seu lado há um ser humano adormecido. Você o conhece, você o
deseja, o dia será longo e bom ao redor dele. Mas os olhos insistem em não ver
o óbvio.
Por isso eu gostaria de
conversar com a moça da rua. Saber a razão da mágoa dela. Entender aquilo que o
cego não percebe. Enxergar por ele, talvez. Me redimir do tanto que deixei de
ver. Me confortar por tantas vezes em que deixei de ser visto. Sabendo, como eu
sei, que há um quê de inexorável na escuridão dos sentimentos. Elas acontecem e
voltarão a acontecer. Se ao menos pudéssemos contá-las, sairiam das sombras
onde moram as tristezas invisíveis. Daríamos voz ao que não se vê.