O perdão é uma espécie de botão
de reiniciar que permite aos casais recomeçar todos os dias
Acho que foi a Miriam Palma, amiga
desde os tempos do cursinho, quem me contou que, dentro de 10 anos, todas as
fotos de nós mesmos que hoje nos parecem feias ficarão bonitas. É só uma
questão de tempo para que a beleza apareça. Nosso olhar precisa mudar.
O mesmo se aplica, me parece, à
questão muito mais grave do ressentimento e do perdão. As coisas que hoje nos
parecem inaceitáveis, e, por decorrência, imperdoáveis, com o passar do tempo
talvez se mostrem verdadeiramente irrelevantes. Nem é preciso esperar 10 anos.
Talvez cinco bastem. Ou mesmo 12 meses. Nosso olhar só tem de mudar.
Estou falando, claro, da relação
entre duas pessoas, das coisas que acontecem no interior dos casais. Imagino
pessoas que se amam ou se gostam – ou têm pelo menos a lembrança desse
sentimento. Essas relações nos são tão caras e tão próximas que, nelas, o ato
de perdoar é essencial. Talvez seja o gesto mais necessário e o mais frequente
de quem partilha a vida com alguém.
Perdoar é como apertar um
inesgotável botão de reiniciar: foi ruim ontem à noite, dormimos com raiva um
do outro, esta manhã reiniciamos. A conversa foi muito dura, agora estamos mais
calmos, que tal reiniciar? Eu fiz algo que a magoou, você reagiu com
brutalidade, reiniciemos, por favor.
Estar com alguém, viver com
alguém, é sinônimo de afrontar e ser afrontado. A cada dia, quase a cada
momento. Os nossos egos, as nossas suscetibilidades tornam difícil o outro se
mover ao nosso lado sem que nos incomode. Ele precisa ser imensamente atento,
ou infinitamente delicado, para não causar nenhum atrito. Mas então, coitado,
não seria humano. Seria alguém apenas tentando nos satisfazer – e rapidamente
nos encheria de tédio.
Seres humanos inteiros, à vontade
no mundo, disputam espaço mesmo com aqueles que amam. As pessoas se esbarram,
se batem – no sentido figurado da palavra, por favor – e dessa refrega
permanente, imperceptível para quem olha de fora, emerge a relação propriamente
dita. Ela é o resultado de uma disputa constante e de uma colaboração
incessante. Por isso é intensa e contraditória, por isso é viva – e por isso
necessita, desesperadamente, do mecanismo apaziguador do perdão.
Somos terrivelmente exigentes com
as pessoas que dividem a vida íntima conosco. Os nossos chefes, os nossos
colegas, os nossos amigos gozam de uma tremenda margem de tolerância. A
peguete, o bonitão que aparece de vez em quando, esses gozam de crédito para
errar. Mas a namorada e o marido, aqueles que fazem parte da nossa vida, não.
Esses não podem pisar fora da linha. Somos vigilantes e intolerantes com eles.
Insuportavelmente intolerantes. Por isso é tão essencial que perdoemos - porque
os estamos julgando e condenando a cada par de minutos, de uma forma que não
fazemos com os demais.
Bem, às vezes as pessoas próximas
nos fazem coisas graves. Elas nos machucam e traem a nossa confiança. Às vezes
nos enganam. Às vezes se enganam. O resultado é sempre péssimo e quase sempre é
impossível perdoar – na hora. Mas o tempo e o convívio com os nossos
sentimentos produzem mudanças. Depois de um tempo de afastamento, depois de um
período intenso de saudades e de considerações, podemos estar prontos a
entender – desde que o orgulho ou nosso senso moral não se interponham. É
preciso ter feito certas coisas na vida para entender porque os outros as fazem.
Quem nunca andou no lado errado da calçada acha que a virtude é simples. Não é.
Minha impressão é que para
perdoar quem nos magoa precisamos de duas coisas – uma sólida conexão afetiva e
alegria.
A conexão faz com que o outro
também sinta o que nos passa. Se eu estou morrendo e a criatura está lá, morta
de rir, se esbaldando, não há o que perdoar – é mais o caso de esquecer. Mas em
geral não é assim. Quando as pessoas se gostam, a dor as liga. O sentimento de
falta é mútuo. Quem magoou quer voltar. A saudades dói, como dizia a velha
música sertaneja. Então, por que não perdoar e reiniciar?
Outras vezes, em casos mais
difíceis e demorados, é a alegria que nos faz perdoar. Ela permite que a nossa
vida avance, permite que a gente recomece com outras pessoas, faz com aquele
sentimento de mágoa seja varrido, lavado, esquecido entre as novas sensações de
prazer e de carinho, senão de amor. Enquanto a gente rola na cama insone de
raiva, enquanto o ressentimento ainda queima, é impossível perdoar. Mas, se a
nossa vida anda, se a gente experimenta a alegria, vai se esquecendo daquilo
que nos fazia tremer de indignação ou de tristeza. Então a mágoa passa e a
gente perdoa sem perceber. Aí, quem sabe, na próxima curva da estrada aquela
mesma pessoa, indultada pelo nosso perdão, reaparece para nos fazer feliz.
Alguém perguntará, racionalmente,
qual a importância de perdoar depois de tanto tempo, quando aquilo que doía nem
dói mais, e quando a chance de cruzar o outro na nossa estrada é cada dia mais
remota. Eu diria que a importância é enorme, por algumas razões.
Não se deve andar pela vida
levando mágoas desnecessárias. Quem perdoa descarrega um fardo e anda mais
leve, porque deixou a dor para trás. Quem perdoa também resgata, recupera
pedaços de si que estavam ligados àquele que não poderia ser lembrado. Nesse
sentido, perdoar permite retomar a posse de seus próprios sentimentos e
memórias. Às vezes, com sorte, esse perdão abra as portas para a recuperação
das pessoas na nossa vida, de um novo jeito.
Uma vez, faz algum tempo, eu
almoçava com uma amiga e falamos de uma pessoa comum, muito importante para
mim. Ao longo da conversa, sem que me desse conta, comecei a falar dela de uma
forma enternecida e alegre, como há muito não falava. Ao fazer isso, ao me
permitir lembrar, de alguma forma ficou claro o buraco que aquela mulher
deixara na minha vida. Dias depois, por essa porta entreaberta, entrou um
sonho, o primeiro em anos em que não havia conflitos ou brigas, apenas afeto e
intimidade. Foi como um resgate. Foi como olhar para uma foto que me parecia
horrível e perceber o quanto havia de beleza nela. Foram precisos quase 10
anos, mas o meu olhar, finalmente, mudara. No lugar da dor e do ressentimento,
havia apenas um suave perdão.
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