A água estava fervendo. Já fazia
algum tempo que a panela deveria estar fora do fogo. A ajudante da casa tira a
panela do fogão e se vira para caminhar na cozinha. Neste momento, o garoto
entra e, acidentalmente, os dois se chocam e toda aquela água cai sobre o corpo
do menino de quatro anos.
Ele, com a dor, perde a
consciência e fica no chão de madeira úmida que compunha o soalho da casa. A
mãe, ao ver o filho queimado, larga o outro mais novo do colo e se põe a ajudar
o filho acidentado. Tira sua camisa de algodão, ainda encharcada de água
quente, que sai com pedaços de pele queimada.
Em uma manhã chuvosa, em uma
Santarém do início da década de 70, grita desesperadamente no meio da rua por
ajuda. O pai estava trabalhando em outra cidade e a mãe sozinha com a ajudante
e mais dois filhos menores. Uma boa alma passa e leva o garoto queimado para
uma clínica da cidade onde trabalhava um velho e competente médico.
O velho médico começa a cuidar do
garoto que está gravemente queimado, com mais de 50% da área corporal
comprometida. Apesar da dedicação e competência, o menino piora, entra em coma
e tem seus rins paralisados. O velho médico chega com a mãe fala:
- Mãe, se o rins não voltarem a
funcionar com 48 horas nós vamos perder o menino.
- O que mais podemos fazer?
Pergunta a mãe.
Ele aconselha a rezar, tendo a
certeza que estava fazendo tudo que podia, numa cidade do interior da Amazônia
sem nenhum recurso. A família do menino nada mais poderia fazer. O pai
eletricista e mãe costureira não tinham finanças suficiente para levá-lo para
uma outra cidade mais recursos. Restava confiar no velho médico, e em suas
orações.
Pouco tempo antes das 48 horas, o
menino começou a urinar novamente. Era escura, em pouquíssima quantidade, mas
que representava o retorno da esperança de vida. A alegria tomou conta da Mãe,
do Pai e do velho médico.
Dias depois, o menino recebe alta
para ser cuidado em casa. Aquele experiente médico havia salvado mais um
morador da cidade. Restava `a família a difícil missão de cuidar do garoto para
evitar as graves cicatrizes que por certo viriam.
As folhas de bananeira eram
cuidadosamente limpas com álcool por seu avô materno e recobriam a cama. O
menino dormia sobre as folhas, para não ter seu corpo grudado a nenhum tecido.
Enquanto isso, a mãe segurava o pescoço e a tia mantinha os braços abertos para
evitar as pregas das cicatrizes. Ao lado da cama com amplo mosquiteiro, um
paneiro cheio de laranja lima, que mais um membro da família se punha a
descascar e oferecer a fruta fresca ao pequeno paciente.
O garoto cresceu saudável e com
poucas cicatrizes do grave acidente. Porém nunca esqueceu do velho médico e dos
dias que quase morreu.
Decidiu ser médico. Quem sabe um
dia pudesse compreender o que havia acontecido com ele e ajudar pessoas, como
também havia sido ajudado.
Deixou família, amigos, o rio que
tanto amava e foi estudar medicina.
Muitos anos depois, o garoto -
agora médico - volta para sua cidade e recebe um chamado para avaliar um
paciente idoso e gravemente enfermo.
O jovem médico entra no apartamento do
hospital e vê o paciente no leito. Antes de falar qualquer coisa, o paciente se
antecipa e diz:
- Amigo, chamei você para me
ajudar a controlar a dor da grave doença que me acometeu.
- Claro ! - respondeu o jovem
médico.
- Sei que vou morrer, mas não
gostaria de sentir dor. Esse é o ponto que quero que você me ajude – falou o
paciente com dificuldade mas extremamente lucido.
O jovem médico tenta animá-lo
para vida:
- Não fale isso. O senhor tem
muito a fazer ainda. Vai sair dessa...
- Não, não... eu já passo dos
noventa anos e minha doença é incurável. É chegado a minha hora. Sei disso,
você sabe disso. Não se preocupe que estou feliz e satisfeito com a vida que
tive. Confio em você. Só não quero sentir dor.
O novo médico tenta mais uma vez
e fala:
- Olhe, o senhor salvou a minha
vida e não posso só amenizar a sua dor vamos ter que fazer mais.
O velho Médico, que salvara sua
vida, agora era seu paciente. Com a mesma franqueza e humildade de anos atrás
responde:
- Não fui eu quem salvou sua
vida, filho. Foi Deus. Foi ele que te ajudou a sobreviver daquela grave
queimadura, numa cidade onde não tínhamos quase nada de recursos.
O jovem medico , baixa a cabeça
com a viva lembrança dos dias que era um grave queimado e compreende que sua
missão seria fazer somente aquilo que o amigo estava pedindo. Começa a sentir
na pele que a vida segue “a mesma lei da flor”. Que o importante na vida é ter
uma vida digna, uma vida boa. Aprende naquele reencontro que não devemos sofrer
com medo da morte, mas estarmos preparado espiritualmente para o fim, que logo
será um recomeço.
O médico sai do quarto, vai até o
posto de enfermagem e prescreve as medicações. Cinco dias após, o velho médico
e paciente vem a falecer sem dor , sem sofrimento e sem medo.
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Dr, Waldemar Pena |
No prontuário do paciente estava
o nome do velho Médico: Waldemar Penna.
Abaixo da prescrição dos
medicamentos estava o carimbo do garoto queimado, que se tornou médico: Erik L.
Jennings Simões.
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Dr. Erik L. Jennings Simões |
Nota: Esta é uma história real em
seus mínimos detalhes. Compartilho com os amigos, como uma forma de comemorar
meus 45 anos de idade que faço hoje e de celebrar a vida, a amizade e a
solidariedade entre as pessoas.
Obs: Dr. Erik é santareno e médico Neurologista e Dr. Waldemar Pena foi um dos grandes médicos que, no outrora, prestou inúmeros serviços médicos, em seu hospital " Casa de Saúde" e nos demais hospitais santarenos. Era um cara simples e prestativo. Era amigo pesssoal de meu pai, que era um simples carregador, mas que num dado momento recebeu em casa a visita do doutor que veio lhe visitar, após saber que papai tinha sido operado de hérnia. Eu era criança , mas jamais esqueci a imagem daquele senhor chegando em nossa humilde casa,numa determinada tarde, todo de branco , com seus cabelos grisalhos. Ele veio visitar meu pai Pedro Rocha e saber se papai estava precisando de alguma coisa, mas com ele já trouxe algumas vitaminas e umas latas de leite especial vitaminado para o papai. Assim que chegou, deu logo uns ralhos no papai, por ter deixado a hérnia estrangular e fez questão de pedir para ver e examinar a cirurgia. E eu jamais esqueci aquele momento que ficou em minhas grandes lembranças.
( Socorro Carvalho)
Fotos: Página do face de dr. Erik e site Notapajós